Debatedores divergem sobre regulamentação do uso medicinal da Cannabis

O uso medicinal da Cannabis — gênero da planta da qual a maconha faz parte — para tratamento de diferentes condições clínicas e enfermidades e a demanda pelo avanço regulatório foram debatidos na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Os senadores ouviram debatedores favoráveis e contrários ao tema, que contribuíram para embasar projetos de lei em tramitação na Casa.

Uma das matérias que trata da regulamentação é o PL 89/2023, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que institui a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivado Vegetal à Base de Canabidiol. Já o PL 4.776/2019, do senador Flávio Arns (PSB-PR), aborda o do uso da planta para fins medicinais, além da produção, controle, fiscalização, prescrição, dispensação e importação de medicamentos.

Paim enfatizou que o debate e os projetos de lei restringem-se ao uso medicinal da Cannabis.

— Na amplitude maior que for imaginável, mas somente para uso medicinal. Não se debate o uso recreativo — ressaltou o presidente da CDH.

Regulação

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) trabalha atualmente com três possibilidades regulatórias: a importação excepcional de produtos derivados de Cannabis por pessoa física; a autorização sanitária de produtos Cannabis e o registro como medicamento.

De acordo com diretor da Anvisa, Alex Campos, estão regularizados para uso no Brasil um medicamento específico e mais 26 produtos derivados da Cannabis. Desde 2015, mais de 180 mil processos de importação por pessoas físicas já foram autorizados.

— É inafastável a informação de que há uma realidade regulatória que se pauta na ciência — afirmou Campos.

Segundo o defensor público de Belo Horizonte (MG) e membro do Grupo de Trabalho Saúde da Defensoria Pública da União, Luiz Henrique Gomes de Almeida, é crescente a demanda judicial individual para garantir a obtenção da medicação.

Como os medicamentos são importados e o valor é elevado, o acesso a pessoas carentes, geralmente usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), fica mais difícil, de acordo com o defensor. Em 2018, foram registrados 30 pedidos pela DPU, número que chegou a 274 em 2022.

— Os números vêm aumentando ano a ano. (…) Quem procura a DPU realmente tem interesse, porque 100% dos casos são judicializados. A via judicial tem efeitos negativos importantes, como a angústia e a dificuldade que isso pode trazer para a família. O correto seria o fornecimento pelas vias regulares da administração — expôs Almeida.

De acordo com o assessor da Fundação Oswaldo Cruz, Valber da Silva Frutuoso, já há quantidade significativa de trabalhos para a eficiência terapêutica, mas “é necessário ampliar também a capacitação de nossos profissionais, para que possam prescrever e tratar com confiança”.

De acordo com nota técnica da Fiocruz, pesquisas com maior nível de evidência “são conclusivas ou substanciais para algumas condições de saúde quanto à segurança e eficácia dos canabinóides na redução de sintomas e melhora do quadro de saúde”, com destaque para algumas enfermidades crônicas, epilepsia refratária, espasticidade, náusea, vômitos e perda de apetite e transtornos neuropsiquiátricos, além de outras condições como os sintomas associados ao Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Mães

Mães de crianças e adolescentes que vivem as dores e as angústias de condições e enfermidades que diminuem a qualidade de vida de seus filhos compartilharam na audiência pública os benefícios do uso da Cannabis.

Representante da Associação Maeconha, Maria Angela Aboin Gomes informou que as muitas associações brasileiras se organizam há muito tempo, até pela falta de legislação nesse setor.

Ela, que “enfrentou uma grande luta para poder conseguir o uso da Cannabis para a filha, que é autista”, afirmou que hoje as famílias que buscam esses medicamentos são criminalizadas.

— A questão maior de preconceito é pelo desconhecimento. (…) Eu, como mãe, não tive tempo de espera, porque a vida não para.

Mãe de Carolina Pereira da Silva, de 13 anos, que tem síndrome de Dravet, Liane Maria Pereira cultiva a planta em seu quintal após ter obtido liberação judicial. Ela demonstrou os avanços para filha, que “antes tinha um olhar perdido” e que a partir do uso de óleo canabidiol conseguiu se livrar de cinco remédios anticonvulsivos.

Liane Pereira produz com as próprias mãos o óleo que, segundo ela, se fosse importado sairia por R$ 2,5 mil, valor com o qual não poderia arcar.

— Precisamos ter mais incentivos à pesquisa. (…) O uso isolado do óleo de canabidiol não teve efeito na minha filha, foi preciso também o THC — afirmou Liane Pereira, ao pedir que os estudos e a regulamentação não contemplem somente um tipo de substância.

Representante da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC), a médica Eliane Nunes afirma que “a Cannabis não está implantada no SUS porque temos um atraso político dessa questão”.

— Podemos produzir o medicamento aqui no Brasil e as universidades estão aqui com as pesquisas.

Segundo o conselheiro Ubiracir Fernandes Lima Filho, do Conselho Federal de Química (CFQ), há no Brasil 41 grupos de pesquisa em produtos naturais com potencial para agregar valor a todo o trabalho de pesquisa da planta.

— Para evoluir, precisamos de recursos e um número maior de pesquisadores trabalhando com a planta.

Debate

Com posição contrária, o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) iniciou sua fala afirmando que “o uso da Cannabis é um assunto que desperta paixões e que tem um conteúdo ideológico”. O parlamentar, que é médico por formação, afirmou que a maconha tem 480 substâncias e que apenas uma molécula tem efeito para fins medicinais, o que não justifica liberar o plantio e o uso da planta no país. Terra afirmou que há “danos graves e irreversíveis” a partir do uso da maconha e que “a psicose canábica é muito mais comum do que a gente imagina”.

— Temos que pensar no custo-benefício. Já temos dificuldade de controlar o consumo [da maconha]. Se liberarmos o plantio, fica incontrolável — afirmou o deputado, que se mostrou favorável apenas a liberação do uso de molécula isolada.

A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) afastou qualquer relação do debate na CDH com o uso da Cannabis para fins recreativos. Ela discorreu sobre o uso que faz de Cannabis medicinal. Mara Gabrilli, que criticou a atuação do deputado Osmar Terra durante a pandemia da covid-19, disse ter se sentido desrespeitada pelas palavras do parlamentar por “não ser uma usuária de drogas”. Para a senadora, Osmar Terra falou no “fórum errado”, pois poderia apresentar seus argumentos quando o tema em discussão fosse o “uso adulto e recreativo da Cannabis”, e não o uso de medicamentos.

Mara Gabrilli disse ser preciso “dar resposta e acalento a quem precisa do medicamento”. Ela lembrou que milhares de solicitações já foram protocoladas para a autorização para importação do medicamento no Brasil.

— Somam-se a eles milhões de pessoas que não têm dinheiro para importação desse medicamento. (…) Não estamos falando em viciar pessoas. Não podemos mais tolerar que se misture [o uso de drogas] com o uso medicinal.

Do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a professora Maria de Fátima Padin também afirmou que “há uma distorção cognitiva da maconha como planta medicinal”.

— Temos efeitos devastadores dos adolescentes pelo uso da maconha.

Para o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) é preciso uma análise mais cautelosa sobre o assunto. Segundo o senador, grandes conglomerados, com interesses econômicos, estão interessados nesse debate em torno da liberação da Cannabis.

— Eu me solidarizo com a dor. (…) Mas alguns especialistas mostram que o efeito do medicamento de laboratório tem o mesmo efeito do óleo. Para que plantar, se podemos ter outras soluções? — disse o senador.

Para a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), as famílias não precisam mais convencer os parlamentares da eficácia do remédio, mas há cuidados a serem tomados na regulamentação do assunto.

— O Brasil é extremamente diferente das outras nações, temos uma questão de segurança nacional. Então, uma decisão nossa não passa apenas pelo quintal de dona Liane. (…) Temos especificidades que temos de tomar cuidados no momento da decisão. Estou preocupada com a ampliação do leque — disse Damares.

Uso amplo

Médico e diretor técnico da Clínica Renasce, Renan Abdalla afirmou que a Cannabis não se resume ao canabidiol (CBD) apenas.

— Não podemos trazer o canabidiol como uma molécula isolada. A limitação de trazer um produto com THC [delta-9-tetrahidrocanabinol] para o Brasil é muito maior. Precisamos usar o máximo que a planta nos oferece.

A mesma posição tem o presidente da Associação Alternativa, Sandro Pozza, que tem familiar em tratamento com óleo de canabidiol. Ele enfatizou que não há como limitar o uso da planta, liberando apenas uma molécula.

— Para cada patologia precisamos de uma canabinóide diferente.

Pozza também reclamou que as pessoas os tratam “como se fossemos traficantes”  e “colocam no mesmo patamar o crack e a Cannabis”.

— Não estamos dando qualidade de vida só para o paciente, mas também para a família de pessoas com patologias graves que precisam disso.

Representante do Conselho Federal de Medicina, Emmanuel Silveira Cavalcanti declarou ser preciso entender o papel da instituição, que tem “suas ressalvas” e que responde aos danos que vier a ocorrer para a sociedade. Por isso, salientou, é preciso deixar claro que se a prescrição é oficial, haverá o controle que cabe a qualquer medicamento, mas, se houver uma prescrição compassiva, o médico pode vir a responder por possíveis consequências adversas.

Também participaram da audiência o diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), Rafael Arcuri; o advogado, representante de associações de pacientes, Ladislau Porto; o representante da Associação Brasileira de Cannabis Medicinal (Santa Cannabis), Pedro Sabaciauskis; o representante da Associação para a Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal, Leandro Stelitano; o representante da Ordem dos Advogados do Brasil, Rodrigo Melo Mesquita; o mestre em Políticas Públicas Carlos Penna; o diretor executivo da Associação Brasileira de Incentivo à Saúde (Abins), Felipe Brollo; o representante da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Renato Filev; e o da Associação Brasileira de Pacientes da Cannabis Medicinal, Paulo Tavares Mariante.

Presidente da CDH, Paulo Paim promoveu um minuto de silêncio pela morte, nessa quarta-feira (19), do advogado Guilherme Campos, que havia sido convidado a participar da audiência pública.

Fonte: Agência Senado

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