EUA veem Brasil como possível rota para China roubar segredos industriais

O Brasil pode ser um cenário para o roubo de segredos industriais, avaliam membros do governo dos Estados Unidos. O país tem operações de muitas empresas dos EUA que usam tecnologias de ponta, e também de companhias da China, país que é o principal competidor americano em várias corridas tecnológicas.

Ao mesmo tempo, o Brasil tem poucas ações coordenadas entre as forças de segurança do país e as empresas. Um representante do governo americano disse à Folha, sob condição de anonimato, considerar que o Brasil possui regras para prevenir o problema, mas as medidas não são aplicadas na prática.

O Brasil é membro do acordo Trips, de 1995, assinado no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) que prevê formas de proteger direitos autorais, como desenhos industriais, patentes e informações sensíveis das empresas.

Outro ponto levantado pelo representante é que as leis que punem o roubo de segredos comerciais no Brasil são consideradas brandas: a pena para o crime é de até um ano de prisão.

Nos EUA, as punições são mais pesadas. Em 2022, a química Shannon You foi condenada a 14 anos de prisão e multada em US$ 200 mil por roubar informações sobre como produzir embalagens de refrigerante sem BPA, aditivo ao plástico suspeito de causar doenças.

You trabalhava na sede da Coca-Cola, em Atlanta, e tentou criar uma empresa na China que usava a tecnologia, com apoio do governo chinês, segundo o processo da Justiça americana.
“Como as evidências mostraram, a ré roubou segredos comerciais valiosos e pretendia usá-los para beneficiar não só uma empresa estrangeira, mas o governo da China”, disse o procurador Matthew Olsen, do Departamento de Justiça, quando a sentença foi anunciada.

Em janeiro deste ano, o engenheiro Xiaoqing Zheng, 59, foi condenado a dois anos de prisão por roubar segredos da produção de turbinas de uma fábrica da GE.
Xiaoqing foi detido depois de um alerta do FBI, que trabalha em cooperação com a GE. A polícia federal americana detectou uma viagem dele à China considerada suspeita e descobriu que ele havia levado arquivos que continham informações protegidas.
As autoridades americanas disseram não poder comentar sobre casos de espionagem que estejam sob investigação. No Brasil, a avaliação delas é que os setores de maior risco são os de fabricação de aviões, agricultura e tecnologia da informação. E a China é vista como principal ameaça.

Para os EUA, os programas Made in China 2025 e 2030, pelos quais o país busca nacionalizar a produção de tecnologia de ponta, indicam as áreas mais sensíveis ao roubo de dados. Procurada, a embaixada da China no Brasil não respondeu ao contato da reportagem.

Em março, o Consulado dos Estados Unidos em São Paulo organizou um evento sobre o tema, reunindo agentes de segurança e empresários para debater formas de proteção e estudar saídas. Também foram convidados representantes da Argentina, Chile, Colômbia e México.

No encontro, os gestores das empresas foram orientados a se aproximarem das forças de segurança e terem uma relação mais próxima, para ajudar a prevenir os casos e a investigar suspeitas, antes que os roubos sejam concluídos.
“Se você rouba US$ 1 milhão de uma companhia, é apenas US$ 1 milhão. Se rouba propriedade intelectual, pode gerar uma perda de US$ 1 bilhão, e pode também ser uma questão de segurança nacional”, compara Erik Gordon, professor da Universidade de Michigan.

Muitas vezes, uma mesma empresa atua na venda ao público e na criação de tecnologias militares. Em um dos casos hipotéticos apresentados no evento em São Paulo, foi relatada a história de uma empresa que cria cenários 3D para games, que também podem ser usados para treinamento de soldados. A inteligência artificial e os drones, tecnologias em expansão, também são cada vez mais usadas em ações militares, como na Guerra da Ucrânia.

Gordon avalia que o tema é especialmente sensível para os EUA também porque propriedades intelectuais são o principal item de exportação do país, em áreas como tecnologia digital, patentes de remédios ou mesmo entretenimento, como séries e filmes.

Os segredos guardados pelas empresas são variados. Uma fábrica de peças para aviões pode levar anos e gastar muito dinheiro para desenvolver um novo tipo de peça para o motor que seja mais leve e ajude a economizar combustível. Se um concorrente aprende como fazer a mesma coisa em instantes, pode lançar um produto similar rapidamente.

Ao mesmo tempo, códigos de programação e algoritmos usados em tecnologias de ponta, como a inteligência artificial generativa, também podem ser copiados.

Estimativas do governo americano apontam que quase 60% dos casos de roubo de informações ocorrem por ações virtuais, como hackeamento. Outros 40% envolvem técnicas mais analógicas, como cooptar funcionários.

Uma das táticas é buscar algum trabalhador que esteja insatisfeito, que seja ambicioso e se sinta desvalorizado ou que esteja passando por dificuldades financeiras.

A abordagem inicial pode vir em forma de convite para um evento em outro país. A partir daí, começa-se a construir um relacionamento, para depois vir uma proposta. As promessas podem incluir, além de pagamentos em dinheiro, apoio para que ele abra sua própria empresa ou um emprego de prestígio no futuro.

Apesar dos esforços de cooperação internacional, o combate à prática é difícil por vários fatores.
“Você pode roubar um monte de informações no Brasil sem ter uma pessoa no Brasil. A China não vai extraditar um espião industrial chinês. E mesmo que haja um espião chinês no Brasil e ele seja preso, em seguida provavelmente a China iria prender dois ou três brasileiros na China, acusá-los de espionagem e propor uma troca”, analisa Gordon.

O professor faz a comparação com base em um caso real. Em 2018, o Canadá prendeu Meng Wanzhou, diretora da Huawei, a pedido dos EUA, onde foi acusada de roubo de segredos tecnológicos. Dias depois, dois canadenses foram presos na China sob acusação de risco à segurança nacional. Após três anos, Wanzhou foi libertada, assim como os canadenses. Outra frente de atuação, a imposição de sanções, pode ser inócua caso as empresas alvo não tenham relações financeiras com os EUA e se dediquem apenas a outros países.

Para Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faap, os casos de espionagem industrial fazem parte de um processo mais amplo, em que a China busca superar os EUA como líder global.

Neste cenário, ela avalia, o Brasil precisa agir com cuidado para não se tornar dependente de um dos lados. “Ao Brasil, o que interessa é navegar por essa rivalidade de forma cooperativa, mantendo o diálogo com todos os lados, sem necessariamente ter de fazer escolhas que impliquem em conflito com um dos lados”, analisa.

“A China está muito unida no propósito de ser líder mundial em coisas como veículos elétricos e inteligência artificial. Pelos próximos 10 ou 20 anos, a China provavelmente não estará interessada em fiscalizar roubos de propriedade intelectual. Mas se a China se tornar líder em IA ou na nova geração de tratamentos de saúde, por exemplo, poderá mudar de ideia para proteger suas tecnologias”, considera Gordon.
O professor lembra que os EUA também usaram técnicas de espionagem industrial no passado, como quando estava desenvolvendo sua indústria têxtil, no século 19.

“Eles obtiveram segredos industriais ao contratar jovens aprendizes ingleses, que ganhavam pouco, e ofereceram a eles muito dinheiro para que imigrassem aos EUA”, conta. “Historicamente, quando serviu aos interesses nacionais, os EUA roubaram segredos valiosos da Inglaterra.” Por FolhaPress

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